O CARNAVAL VERDE E ROSA DE ALICE

Minha avó Alice era uma pessoa tranquila, alguém que preferia o aconchego do lar às festividades e ao burburinho das multidões. Festas, bailes e principalmente o carnaval na sua versão mais tradicional de salão, não eram o seu tipo de entretenimento. Mas havia uma exceção marcante no que diz respeito a essa animada celebração: ela nunca perdia a transmissão dos desfiles das escolas de samba e sempre assistia, alegremente, o espetáculo do carnaval carioca na Globo. Minha avó nutria uma fascinante paixão pela Estação Primeira de Mangueira.

Não era apenas a música ou os enredos cuidadosamente elaborados que capturavam sua atenção, mas as vibrantes cores verde e rosa da Mangueira que realmente encantavam sua alma.

Minha avó não era a única a ser tomada por esse fascínio pelo carnaval. Assim como ela, nunca fui de brincar o carnaval ou vestir fantasias coloridas, mas sempre fiquei intrigada pelos temas e pelas exuberantes fantasias. Aprendi com ela a admirar a criatividade e o talento por trás de cada detalhe, imaginando o desafio de sua elaboração.

Entre a TV e o rádio: duas festas em uma

As noites de carnaval em nossa casa tinham um algo a mais. Enquanto eu, minha avó, minha mãe e meu irmão assistíamos aos desfiles, dividíamos nossa atenção com o rádio. Meu pai, Cícero Henrique, na época diretor da Rádio Cidade, era a familiar voz por trás das transmissões ao vivo do carnaval de rua de Jundiaí. Estávamos tão perto de seu epicentro que, apenas baixando o som da TV, podíamos ouvir o carnaval de rua logo ali, nas proximidades de casa.

Enquanto intercalávamos a nossa atenção entre a TV e o rádio, transformávamos nossa sala num verdadeiro clube de carnaval. Juntávamos confetes e serpentinas, jogando-os ao ar, dançando e celebrando como se estivéssemos entre as avenidas do Rio, sempre esperando ansiosamente a passagem da Mangueira. Ficávamos acordados até que a “estrela da noite” se apresentasse, não importava a hora que fosse. Muitas vezes, íamos dormir de madrugada, contrariando a minha rotina diária de criança. Era uma tradição fora do comum, com certeza, mas se tornava mágica com o entusiasmo e as ideias divertidas da minha avó.

A bagunça e a emoção

Imagine a cena em nossa sala: confetes cobrindo o chão como um tapete colorido, serpentinas penduradas por toda a parte, e nós, completamente tomados pela alegria da noite carnavalesca. Quando meu pai chegava em casa, era impossível não dar risada ao ver a bagunça que tínhamos feito. Ele mal conseguia atravessar pela sala sem tropeçar em nossa diversão.

No dia seguinte, o árduo trabalho de limpar cabia à minha mãe, que se via recolhendo sacos e mais sacos de confete e serpentina, ainda que sem se queixar, pois aquelas noites eram de pura felicidade e união. Minha avó, por sua vez, fazia questão de assistir à apuração do carnaval, torcendo fervorosamente pela vitória da Mangueira. Ela não era alguém que torcia para um time de futebol, mas quando se tratava da Mangueira, se tornava a torcedora mais apaixonada.

A voz da cidade

A presença do meu pai no rádio era sempre notável. Na época, ele era diretor da Rádio Cidade, um cargo que lhe conferia não apenas prestígio, mas também uma conexão profunda com a comunidade local. Todas as manhãs, ele comandava com maestria o programa “Ação e Informação”. Sua voz, marcante e carismática, era reconhecida e aguardada por muitos ouvintes que queriam se informar e ouvir às diversas entrevistas que ele conduzia com personalidades importantes, especialmente do cenário político do país.

Durante ocasiões especiais, como a apuração das eleições e o carnaval de rua, era ele quem assumia o comando das transmissões, trazendo aos ouvintes cada detalhe de eventos que tanto empolgavam a cidade. Sua capacidade de capturar a essência do carnaval com palavras fazia com que os ouvintes se sentissem parte da festividade, mesmo aqueles que estavam longe do evento.

Tradições familiares

A combinação da TV e da transmissão de rádio realizada pelo meu pai fazia daquelas noites algo único.

São memórias como essas que valorizo, destacando como o carnaval, apesar de seu aparente caos e tumulto, foi para nós uma experiência de carinho e tradição familiar. Aquela bagunça na sala de estar, os risos, e os confetes espalhados ficaram como um símbolo de alegria e amor, lembrando-nos de que as festas mais bonitas às vezes acontecem nos lugares mais simples e com as pessoas que amamos.

Essas eram as noites felizes em nossa casa – uma sinfonia de cores, sons e sentimentos, eternamente viva nas páginas do tempo em que a minha avó Alice conduzia nosso alegre carnaval.

Tradições que continuam

Hoje, a tradição de assistir ao carnaval persiste, mas agora compartilho esses momentos com meu filho. Ele sempre se diverte com os enredos elaborados das escolas de samba, uma verdadeira explosão de criatividade que nunca deixa de nos encantar. A cada desfile, refletimos não apenas sobre o espetáculo, mas também sobre como o carnaval continua a nos conectar com temas tão relevantes.

Neste carnaval de 2025, a Mocidade Independente de Padre Miguel nos brindou com uma reflexão instigante durante seu desfile, utilizando as referências dos Flintstones e dos Jetsons para criar um contraste fascinante. Com o enredo intitulado “Voltando para o Futuro – Não há Limites para Sonhar”, a escola explorou uma crítica à evolução tecnológica desenfreada e como ela tem nos afastado da simplicidade e conexão com a natureza.

Por meio das figuras icônicas dos Flintstones, representando uma era mais primitiva, e dos Jetsons, simbolizando um futuro de alta tecnologia, a Mocidade construiu um cenário onde passado e futuro se entrelaçam. O desfile nos convidou a refletir sobre as consequências do progresso quando este não é equilibrado com o cuidado pelo nosso planeta e pelas relações humanas. A mensagem da Mocidade nos lembrou que o futuro dos sonhos deve sempre se alinhar com a essência do que somos: humanos em harmonia com a natureza.

Esses momentos compartilhados com o Vítor são uma continuação das memórias que comecei a criar com minha avó e que, aos poucos, vão se reinventando e ganhando novos significados no calor da temporada carnavalesca. É assim que mantemos o espírito do carnaval vivo, adaptando-o às nossas vidas e cores atuais, sempre esperando por novas histórias e lembranças a cada ano.

Lílian Gaspar

Advogada | Família e Sucessões

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Olá! Eu sou a Lílian

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, turma de 2005; especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009; mestra em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2014; advogada, sócia do escritório Henrique & Gaspar Sociedade de Advogados.

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